
A gourmandise (
a arte de bem comer), no caso de ser compartilhada, tem a mais profunda influência na felicidade da vida conjugal.
Dois esposos
gourmands têm pelo menos uma ocasião diária para se reunirem,
(mesmo os que dormem em camas separadas, e são muitos) têm possibilidade de comer à mesma mesa e sempre assunto de conversa.
Podem conversar sobre o que comem, como sobre o que comeram ou vão comer, assim como também acerca do que viram comer a outrem, dos pratos que estão na moda, das invenções recentes, etc.
É uma mesma necessidade que atrai os esposos para a mesa, é um mesmo desejo que os faz permanecer à mesa, têm de ter um para com o outro pequenas atenções que revelam a vontade de ser prestável. A forma como se passa a refeição influi muito na felicidade do resto da vida em comum.
Esta observação, entre nós bastante nova, não escapou porém ao moralista inglês
Fielding que a desenvolveu no seu romance Pamela, mostrando o modo diverso como dois casais terminam o seu dia.
O primeiro é um lorde, primogénito, e portanto senhor de todos os bens da família.
O segundo é o seu irmão mais novo, marido de Pamela, deserdado por causa de ter casado com ela, vivendo de uma pequena pensão, num estado de pobreza que raia a indigência.
O lorde e a esposa encontram-se à noite, vindo cada um do seu lado, saúdam-se friamente, apesar de não se terem visto durante todo o dia.
Sentam-se à mesa esplendidamente posta, rodeados por lacaios cheios de dourados, servem-se em silêncio e comem sem prazer.
Só depois de os criados se retirarem é que eles entabulam uma espécie de conversa; não tarda a surgir um certo azedume que se transforma em discussão; levantam-se e vão, furibundos, cada um para os seus aposentos, meditando nas doçuras da viuvez.
O outro irmão, pelo contrário, chega à sua casa modesta, é acolhido com o mais terno entusiasmo e as mais doces carícias. Senta-se à mesa frugal...
mas será possível que as iguarias que vai comer não sejam deliciosas? Foi a própria Pamela quem as cozinhou! Deliciados, vão comendo, falam das suas coisas, dos seus projectos, do seu amor. Meia garrafa de Madeira faz com que a refeição e a conversa se prolonguem um pouco mais; um mesmo leito os vai em breve receber; e, após os transportes de um amor compartilhado, um sono suavíssimo virá para lhes fazer esquecer o presente e os fazer sonhar num porvir melhor.
Honra à gourmandise, aquela que não afasta o homem das suas ocupações e fortuna.
Só quando a gourmandise se torna gula, voracidade, crápula, é que deixa de merecer o seu nome, e sai das nossas atribuições, passando para as do moralista que a tratará com os seus conselhos ou para as do médico que a curará com remédios.
A gourmandise, tal como o professor a trata, neste artigo, tem de ser chamada pelo seu nome francês; não pode ser designada pela palavra latina gula, nem pela inglesa gluttony, nem pela alemã lusternheit.
Aconselhamos portanto quem traduzir este livro instrutivo a conservar o substantivo, mudando apenas o artigo: todos os povos têm feito o mesmo com a palavra coquetterie e outras afins.
Brillat-Savarin, Jean Anthelmein Physiologie du Gout,
ou Meditations de Gastronomie Transcendante...
Paris: Sautelet et Cie, 1826. ... Digam lá que o Diabo não sabe da poda.....